Mireya Valencia, professora da Universidade de Brasília (UnB) e diretora presidente da Rede Brasileira de Pesquisa e Gestão em Desenvolvimento Territorial (Rete), apresenta as ações do projeto Produção Rural Inclusiva e Sistemas Alimentares: apontando caminhos para consolidação de nichos de inovação (Prisma) e fala sobre os principais desafios para a Inclusão Produtiva Rural na América Latina e Caribe
CIPR – Quais são os principais achados nas pesquisas do projeto “Produção Rural Inclusiva e Sistemas Alimentares: apontando caminhos para consolidação de nichos de inovação” (Prisma). Já é possível identificar as principais recomendações para as políticas públicas sobre IPR na América Latina e Caribe?
É importante mencionar que o projeto Prisma está estruturado por dois componentes. O primeiro deles aprofunda os estudos realizados no primeiro ano em que a Rete sediou a Cátedra, desenvolvendo uma tipologia de IPR, e o segundo, é o componente internacional que vincula a um grupo importante de parceiros da Rete.
MV: No primeiro componente, partimos da premissa que a inovação inclusiva é um caminho necessário para a inclusão produtiva. Quando caracterizamos as experiências de inclusão produtiva rural e as agrupamos por tipos podemos orientar, em contextos diferenciados, políticas públicas, levando em consideração para isso cada tipo identificado. Além disso, a tipologia nos ajuda a compreender quais intervenções são adequadas para serem aplicadas em larga escala, como também, nos ajudam a identificar unidades de análises para serem estudadas em detalhe e compreender melhor um determinado tipo. Esse último aspecto, de aprofundamento no estudo de alguns dos tipos desenvolvidos, é o que estamos realizando na atualidade nos Territórios de Borborema (Paraíba) e Sertão Central (Ceará). Escolhemos esses casos porque são grupos de famílias de agricultoras e agricultores que se localizam nos territórios, cooperam, geralmente estruturados em redes, experimentam e criam novidades produtivas, sociais, culturais e avançam no processo de transição para sistemas alimentares sustentáveis.
Uma questão chave é saber como estão sendo produzidos, processados, distribuídos e consumidos os alimentos e entender as inter-relações entre a agricultura, a mudança climática, sistemas alimentares e segurança alimentar. Nosso primeiro desafio é identificar, tipificar e compreender como funcionam redes de organizações (nichos sociotécnicos), que em territórios rurais brasileiros favorecem processos de inclusão produtiva via inovações inclusivas e atuam no âmbito de sistemas alimentares sustentáveis. O segundo é, a partir do que aprendemos com essas experiências, propor alternativas que favoreçam a transição para sistemas alimentares sustentáveis.
O tema da inclusão produtiva continua sendo uma pauta extremamente relevante e mais ainda quando os desafios para reduzir as desigualdades nos espaços rurais continuam presentes, evidenciando-se nas cifras de pobreza e fome na América Latina. Ao falar das similitudes que aproximam os quatro casos que foram estudados, lamentavelmente, uma delas é essa condição de desigualdade nos territórios rurais. Embora, haja situações de diminuição importante nos últimos anos do número de famílias em condição de pobreza, como a chilena, por exemplo, há muito a ser feito para incluir produtivamente um número maior de pessoas.
O segundo componente, o internacional, se concretizou graças à parceria entre as quatro redes de pesquisa. Aquelas redes homólogas à Rete na Colômbia (Rede GTD – Paz Colômbia) e no México (Rede GTD) e a Rede de Políticas Públicas e Desenvolvimento Rural na América Latina e o Caribe (Rede PP-AL). Nessa parceria, nos propusemos a identificar experiências promissoras de IPR no México, Colômbia, Chile e Brasil e fazer uma análise transversal das mesmas.
Há um conjunto de similaridades entre esses países. Lamentavelmente, compartilhamos as condições das múltiplas desigualdades. Nos territórios rurais se concentram as condições de maior pobreza e fome que atingem, sobretudo, mulheres, jovens, comunidades e povos tradicionais. Há um baixo investimento em infraestrutura, uma alta migração, seja para os territórios periféricos nas cidades ou num processo de ampliação da fronteira agrícola, que ameaça os recursos naturais. No entanto, compartilha-se o interesse pela IPR, assim se utilizem outras nomenclaturas para indicar as políticas com esses objetivos.
Um ponto crucial nessas ações é contar com instrumentos que ajudem na identificação daquelas famílias em situação de exclusão (os excluídos dos excluídos) que ainda não acessam benefícios das políticas públicas. Muitas das famílias agricultoras não participam das redes sociotécnicas do Polo Sindical de Borborema, nos Nodes no México, nas Sociedades BIC (Sociedades de Benefício e Interesse Coletivo) na Colômbia, ou no Programa de Ater (Prodesal), no Chile. Um elemento fundamental para enfrentar o problema é entender a situação territorial. Isto é, saber os espaços em que se localizam as famílias que não participam, como elas vivem, se tem alguma inserção em grupos formais (associações) ou informais. Fazer um diagnóstico sobre pobreza e fome para, a partir daí, traçar estratégias de enfrentamento (políticas de crédito, ações de assistência técnica, pesquisas inovadoras etc) que gerem resultados efetivos para fugir do círculo de exclusão.
Também é importante levar em conta que as condições dessas famílias em situação de vulnerabilidade são diferentes. Algumas delas estão muito mais desestruturadas que outras ou sofrem violência intrafamiliar, sobretudo as mulheres e os jovens, o que dificulta o acesso desses indivíduos aos diferentes apoios que podem ser oferecidos.
Uma lição importante, a partir do caso brasileiro, é que as redes sociotécnicas constituídas a partir de temas mobilizadores e de experiências levadas a cabo pelas famílias, têm conseguido avanços importantes na linha da identificação dessas famílias e sua articulação em processos mais duradouros.
Outra das evidências nos estudos de caso no Chile, México e Colômbia é a ausência de instrumentos que facilitem a coordenação de atores no âmbito local, como também uma coordenação com outros instrumentos de política a nível nacional. Para o caso brasileiro, as ações em rede têm sido favorecidas pelo investimento de recursos públicos, mas há um processo de coesão nesse território de longa data que pode ajudar a entender como, desde o território, potencializam a oferta feita desde o Estado.
CIPR – De que forma nichos de inovação na América Latina e Caribe têm sido determinantes na condução para uma transição para sistemas alimentares sustentáveis e inclusivos?
Essa é uma pergunta importante, para a qual ainda não temos resposta. A literatura na área aponta a compreensão incipiente dos mecanismos através dos quais os nichos reconfiguram os regimes no setor agroalimentar. Especificamente para o caso brasileiro, no qual os estudos são continuidade do primeiro ano em que a Rete sediou a Cátedra, abordamos o referencial das transições sociotécnicas.
O que podemos trazer, a partir da revisão que temos feito e as evidências nos casos de Borborema e do Sertão Central no Brasil, é que a inclusão produtiva não acontece sem que haja aspectos territoriais propícios a ela, mas também que a própria inovação de base popular, que pode se configurar como o desenvolvimento de nichos sociotécnicos, pressiona por mudanças estruturais no sistema sociotécnico que vão impactar a configuração territorial e promover espaço para o seu desenvolvimento. O tempo, sem dúvida, contribui para que haja maior coesão e facilita a definição de alternativas frente a eventos externos, como a formulação de novas formas de gestão de seus empreendimentos.
CIPR – A partir das evidências sobre políticas públicas de Inclusão Produtiva Rural (IPR) quais são as principais aprendizagens para a IPR e as estratégias para enfrentá-los na América Latina?
MV: A partir das evidências do caso brasileiro podemos afirmar que a perspectiva da inclusão produtiva e das inovações inclusivas dá maior resiliência a esses grupos sociais. Este tipo de desenvolvimento demora mais, mas dura mais.
Vendo os casos estudados, identificamos que os países trabalham com indicadores como a pobreza multidimensional, calculam índices de exclusão produtiva e contam com estatísticas sobre as condições de vulnerabilidade das famílias, mas as estratégias implementadas mantém o foco setorial com muita dificuldade para avançar na intersetorialidade. De igual forma, há tentativas de articulação entre políticas sociais e produtivas do Estado, mas a evidência de maior articulação é observada em territórios com grupos estruturados em redes que definem coletivamente regras para a construção de mercados e a proteção do território.
Por fim, cientes de que a coordenação é um problema histórico, existe a necessidade de pensar como favorecer espaços de coordenação que diminuam a dispersão de ações e sejam mais instrumentais e efetivos, que cheguem às populações em situação de vulnerabilidade. Corre-se o risco que a implementação de políticas públicas para a IPR continue sendo fragmentada.
CIPR – É possível identificar avanços no Brasil no sentido de se garantir sustentabilidade estratégica alinhando a inovação inclusiva com a inclusão produtiva rural? Quais são os desafios neste sentido?
MV: Os casos que estão sendo estudados no Brasil estão localizados no Ceará e na Paraíba. Até agora, avançamos nas análises do caso da Borborema. O trabalho de campo no Sertão Central foi recentemente finalizado. Os principais desafios no Território da Borborema são a pressão que recebe pela produção de monoculturas, tipo frutas e batata, e a produção de hortaliças com uso intensivo de agrotóxicos. Também, se apresenta o avanço dos parques eólicos. A área prioritária mais presente nestas experiências foi a do acesso aos mercados e, por outro lado, uma significativa diversidade de combinações de tipos de inovação (inovações técnicas, não-técnicas e sociais). Conclusivamente, o estudo proporcionou o reconhecimento da inclusão produtiva através da renda e do trabalho, mas, especialmente, da capacidade cognitiva (conhecimentos) dos grupos vulneráveis.
Rede de agricultores experimentadores, agricultores que dialogam com o conhecimento científico e vão inovando em temas como o acesso e conservação da água, a conservação e distribuição de sementes crioulas, a fundos rotativos ao investimento, feiras agroecológicas e quitandas. Além disso, a produção para autoconsumo é fundamental para essas famílias.
As redes sociotécnicas, constituídas a partir de temas mobilizadores e de experiências conduzidas pelas famílias, têm conseguido avanços importantes. Como a água com as cisternas (para consumo humano e/ou para uso produtivo) tem sido a porta de entrada para muitas famílias que não participavam dos processos inovadores e inclusivos; fundos rotativos de animais para as famílias em situação de maior vulnerabilidade; a rede de banco de sementes comunitários (em alguns estados, casas de sementes) tem como estratégia central o resgate, manutenção, ampliação e valorização das sementes crioulas e/ou adaptadas às comunidades (chamadas de “sementes da paixão”); rede de agricultores experimentadores com uma relação dialógica – horizontal – estabelecida nessa dinâmica é um ponto essencial, especialmente pelo princípio da troca de saberes e conhecimentos, entre famílias agricultoras, técnicos de apoio e gestores públicos.
Por fim, destaque-se o papel das feiras agroecológicas e sua estrutura de governança em rede, conforme discutidas acima, e como elas cumprem um papel fundamental para geração de renda e trabalho para as famílias. Elas podem ser uma ponte de construção de mercados locais e/ou territoriais.
CIPR – Você está em meio ao VIII Congresso Internacional de Gestão Territorial para o Desenvolvimento Rural e o XIV Fórum Internacional de Desenvolvimento Territorial. Quais são as expectativas frente a este encontro que traz a temática Gestão territorial de políticas públicas para a transição dos sistemas alimentares na América Latina?
MV: Sim, está acontecendo agora. Começou ontem (30/10) e termina na sexta-feira (3/11). É um evento muito relevante no marco da articulação que temos construído junto com outras redes de pesquisa nos estudos territoriais à que se soma, para este evento, o Centro de Excelência em Sistemas Agroalimentares Sustentáveis e Resilientes para a Transformação Social da Universidade Nacional da Colômbia. É nosso oitavo evento conjunto. Esperamos que este evento, com um número significativo de pessoas inscritas, possa gerar reflexões que nos permitam avançar na estruturação de políticas públicas que, de maneira coordenada, contribuem na diminuição das desigualdades nos territórios rurais. Entendemos que, ao estabelecer a transição dos sistemas agroalimentares na América Latina como ponto de referência para a reflexão territorial, se reconhece que a questão alimentar materializa questões-chave da abordagem territorial, como são a multiescalaridade, o planejamento multinível, a complexidade que caracteriza aos sistemas territoriais e a garantia do acesso a alimentos saudáveis e adequados o que implica levar em conta, não somente a produção dos alimentos, mas também, a distribuição, disponibilidade e acesso.