Juliana Tângari, diretora do Comida do Amanhã, destaca transição agroalimentar, com sustentabilidade e inclusão produtiva

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Compreendendo a transição agroalimentar e a transição energética como pilares centrais na intersecção entre inclusão produtiva e mudanças climáticas, convidamos Juliana Tângari, diretora do Instituto Comida do Amanhã, advogada e mestre em Direito Civil, para conversar sobre os fundamentos desse processo e sua conexão com a inclusão produtiva rural e a sustentabilidade.

Na entrevista a seguir, ela compartilha suas perspectivas sobre os desafios e oportunidades na busca por uma agricultura e pecuária mais sustentável, além do papel do Comida do Amanhã em fóruns globais, como o G20. Traça também uma visão sobre as mudanças necessárias para avançarmos em direção a um futuro onde a produção e o consumo de alimentos estejam alinhados com a preservação ambiental e a justiça social.


CIRP – Como o Comida do Amanhã define e enxerga a transição agroalimentar no contexto atual? Quais são os principais pilares dessa transição?

JT – Para a gente chegar num estado em que os sistemas alimentares sejam realmente sustentáveis, regenerativos e promotores de saúde e justiça, temos que passar por um período de transição que precisa estar ancorado em alguns princípios. Eu chamaria atenção para dois deles: a busca da coerência ou evitar incoerências. O sistema alimentar é um sistema complexo, não existe solução única para todos os seus desafios, mas o mais importante é evitar que uma ação que busque solucionar uma parte do sistema piore outra parte.. Enxergar o sistema como sistema e buscar coerência nas ações,especialmente nos incentivos e desincentivos de política pública e intervenções governamentais, é muito importante. Outro ponto, é a justiça social. Nós já partimos de um cenário de tremendas desigualdades, é preciso que toda ação para transformar os sistemas alimentares ponha em primeiro lugar quem está vulnerabilizado pelos modelos econômicos vigentes.

 

CIRP – Como a transição agroalimentar se inter-relaciona com a inclusão produtiva rural e a sustentabilidade? Quais são as interdependências mais críticas que vocês identificam?

JT –  A agricultura e a pecuária conformam historicamente um setor econômico no qual foi investido para gerar riquezas e ampliar produtividade. Mas esse investimento sempre foi desigual. O Brasil, como resultado de sua história colonial, tem modelos de produção comercial, de larga escala, industrial, monocultora, e o modelo de produção familiar, que tende a ser mais diversificado em culturas e empregador de mão de obra. Nas últimas décadas, vimos muitas políticas públicas sendo desenhadas para gerar a inclusão produtiva da Agricultura Familiar e focar na diminuição da pobreza rural. Mas é preciso mais. O instrumento da compra pública de alimentos, utilizado no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e no Programa Nacional de Alimentação Escolar( PNAE), é uma excelente forma de intervenção estatal e incentivo à produção familiar, mas não é o único nem suficiente. Acesso a crédito e acesso à assistência técnica devem vir juntos. E, especificamente, quando se pensa num incentivo a um modelo de produção ecológico, sustentável, que possa combater a monotonia agroalimentar, que vivemos hoje, a valorizar a sociobiodiversidade, certamente a cesta de políticas públicas existente  não dá conta dessa tarefa. O Plano ABC+, o Safra Agricultura Familiar, e os prêmios – sobrepreço – em compras públicas a produtos ecológicos não estão ainda dando a cobertura necessária para um verdadeiro incentivo robusto à transição do modelo produtivo no Brasil, sem falar na interrupção do Programa Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos e a incoerência da política tributária dos insumos agrícolas.

 

CIRP – De que maneiras as políticas públicas podem apoiar e acelerar a transição agroalimentar, especialmente no que se refere à inclusão produtiva rural e à promoção da sustentabilidade? Quais ações específicas poderiam ser implementadas?

JT –  Algumas sugestões passariam por mais crédito e financiamento fluindo, de fato, para a agricultura familiar e a agricultura comunitária – de povos e comunidades tradicionais; programas públicos de assistência técnica agroecológica sendo oferecida em larga escala no Brasil; orçamento real para custear pagamento de prêmio/ sobrepreço diferenciado para produtos de base agroecológica, alinhar a produção ecológica, com pagamento por serviços ambientais.

 

CIRP – Como o Comida do Amanhã tem atuado na força-tarefa de combate à fome e pobreza do G20? Qual é o papel da instituição nesses espaços de discussão global? E quais aspectos sobre inclusão produtiva rural estão sendo trabalhados nesses debates?

JT –  Logo que o Brasil assume a presidência do G20 e começa a desenhar a Trilha de Fianças (FT em inglê) de Combate à Fome e à Pobreza, nossa primeira preocupação foi que essa FT não fosse orientada ao conceito restrito de combate à fome e, sim, ao conceito mais amplo de segurança alimentar e nutricional e promoção da alimentação saudável, e também que não promovesse o conflito ou esvaziamento do Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CFS), e suas recomendações em política pública garantido o direito à alimentação. O Comida do Amanhã, juntamente, com diversos parceiros, como a Cátedra Josué de Castro sobre Sistemas Alimentares e outros, realizaram dois seminários internacionais ainda no primeiro semestre deste ano, para ampliar o debate sobre a monotonia agroalimentar e a necessidade de enfrentamento via ações do G20, especialmente da oportunidade aberta pela Aliança Global contra Fome e Pobreza, no qual participaram membros da FT. Também participamos, via C20, do grupo de engajamento da sociedade civil no G20, especialmente de um GT de sistemas alimentares, que produziu recomendações específicas para a Aliança Global contra Fome e a Pobreza. A cesta de política pública a ser financiada pelo mecanismo desta Aliança ainda está em construção, 

mas esperamos ver ali, no que diz respeito a exemplos brasileiros, não apenas o Bolsa Família, mas também, o Programa de Alimentação Escolar, o Programa de Aquisição de Alimentos, a Cesta Básica de Alimentos Saudáveis, e o Sistema de governança de Política Pública de SAN a exemplo do SISAN.

 

CIRP – Quais são as principais oportunidades e desafios que a agenda da transição agroalimentar apresenta, especialmente com foco na inclusão produtiva rural e na sustentabilidade? E como podemos avançar nessa agenda?



JT –  Desafio importante segue sendo a compreensão da agenda com abordagem sistêmica, ou seja, não adianta investir na oferta e não investir na demanda. Produzimos de forma insustentável porque nos alimentamos de forma insustentável. A crescente demanda por produtos ultraprocessados e a padronização das dietas humanas de forma “monótona” cada vez menos diversificada, leva também a essa produção monótona, redutora de biodiversidade e altamente consumidora de recursos naturais. Regular a indústria da alimentação e promover a alimentação saudável, deve andar de mãos dadas com a promoção de modelos produtivos mais ecológicos, regenerativos, promotores de sociobiodiversidade, responsivos aos direitos dos povos e comunidades tradicionais e mais adaptados às mudanças climáticas. É preciso, também, pensar na política de abastecimento e especialmente do abastecimento urbano e periurbano como um importante elo dessa transição agroalimentar. Os incentivos à transição precisam ser claros, robustos e coerentes. A gente precisa avançar na efetivação dos compromissos internacionais assumidos – especialmente os relacionados à Conferência da Biodiversidade – os compromissos de segurança alimentar e nutrição, e os compromissos de mitigar e reduzir emissões com um modelo de produção de alimentos mais ecológico, preservador do limites dos biomas brasileiros – já que no Brasil os sistemas alimentares respondem por mais de 70% das emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE),  segundo o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG).

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