Entrevista com professor Jean-Louis Le Guerroué destaca Indicações Geográficas como estratégia para desenvolvimento sustentável dos territórios

leia esta notícia

Com o objetivo de aprimorar a compreensão do potencial das Indicações Geográficas (IGs) para estratégias de inclusão produtiva e desenvolvimento sustentável, a pesquisa liderada pela Universidade de Brasília (UnB), uma das organizações-sede da Cátedra IRP deste ano, visa gerar subsídios para uma política nacional de IGs que promova a dignidade na produção agrícola e a preservação dos patrimônios culturais, incluindo os alimentares. Nesta entrevista, o professor Jean-Louis Le Guerroué, coordenador do projeto, destaca alguns avanços deste trabalho que busca fortalecer os territórios por meio das IGs.

Neste projeto, a primeira fase focou na avaliação das transições agroecológicas em propriedades de produtores de queijo de leite cru em diversas regiões do Brasil, como Campos de Cima da Serra (SC), Araguaia (GO), Major Gercino (SC), Região de Seara (SC) e Região da Canastra  (MG). Utilizando a metodologia da FAO, denominada Tool for Agroecological Performance Evolution (TAPE), o estudo analisa princípios essenciais para a sustentabilidade. Já em andamento, este trabalho promete oferecer insights valiosos para moldar o futuro das IGs e suas contribuições para o desenvolvimento local.

 

CIRP –  Como surgiu a ideia do projeto: Reforçar o Desenvolvimento Sustentável dos Territórios através das Indicações Geográficas (IGs) e qual balanço o senhor faz dos trabalhos? Já é possível fazer uma avaliação prévia?

JG – Muito se fala dos impactos econômicos das IGs, mas pouco ainda dos impactos sociais e ambientais.Trabalhamos no sentido de que as indicações geográficas não são unicamente uma propriedade intelectual, uma proteção contra a usurpação de nome de um bem oriundo de uma região, mas também uma estratégia cuja essência é baseada no saber tradicional, nas características intrínsecas de um território e, portanto, tem todas as propriedades para um desenvolvimento sustentável tanto do ponto de vista econômico, quanto social e ambiental. Então, começamos a fazer esta relação entre a Europa, França e o Brasil. Tivemos essa ideia de levantar o projeto, focando nesse tripé para ver se, realmente, a implantação das IGs no Brasil produz esses impactos.

O que a gente observa no momento, e ainda falta muito para analisar todos os dados coletados, é que há um forte impacto econômico para os produtores que participam das indicações geográficas. No entanto, é importante ressaltar que essa adesão não se traduz necessariamente em discriminação, especialmente, em termos de inclusão produtiva, por exemplo, aos produtores que não participam de uma indicação geográfica. O impacto é mais econômico, isso, sim. Mas, nem sempre favorecem, por exemplo, o empoderamento das mulheres ou a participação dos jovens. Em termos ambientais, os dados, da mesma forma, não mostram um efeito positivo melhor para as IG do que sem elas. Existem tendências, mas não tão fortes assim como a gente poderia ter esperado nessa situação. Essa é uma primeira observação importante. 

Acredito que a diferença também não é tão significativa, porque o número de produtores participando de indicação geográfica é relativamente baixo em relação aos totais de produtores da região determinada. Nós trabalhamos aqui nos projetos com queijos de leite cru. E na região que participaram do projeto, a gente observa que são poucos os que têm IG. Por exemplo, o queijo Serrano, só tem um produtor da região de Santa Catarina que tem a IG, os outros mil, não têm. Na região da Canastra, também são pouco mais de 70, num universo superior a 800 produtores. Então, o número ainda é bem baixo em relação ao total de produtor. Por isso, talvez a incidência das IG não seja tão forte, quando a gente compara os IG´s com não IG´s.

 

CIRP – Quais foram os principais desafios enfrentados durante a implementação do projeto? 

JG – Foram vários desafios. Uma dificuldade que tivemos foi trabalhar no âmbito quase nacional aqui no Brasil, com estudos de caso para comparar as diversas regiões de produção de queijos. Isso cria desafios em termos de logística, deslocamento, financeiros e para encontrar pessoas. Apesar disso, conseguimos a participação na pesquisa de estudantes do Master Food Identity da França, mestrandos, que aplicaram o nosso questionário da Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura (FAO), em três das seis regiões do estudo. Conseguimos encontrar estudantes, também, nas outras regiões e contar com um técnico da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural EPAGRI de Santa Catarina. Foi um desafio importante encontrar pessoas, estudantes disponíveis, que tenham essa capacidade de ficar no campo, mas o resultado foi excelente. A logística é muito desafiadora, devido à extensão das áreas da pesquisa e às condições de acesso às propriedades

Outro desafio, também durante a implementação do projeto, foi a disponibilidade dos produtores em responder ao questionário. Eles são muito ocupados pelas tarefas do dia a dia. Acordam cedo, estão muito ocupados na ordenha, na fabricação dos queijos, têm pouca disponibilidade de tempo para responder ao questionário que é extenso. Muitos produtores estão na informalidade, isso também é outro fator desafiador, porque têm receio de se expor. São algumas dificuldades que a gente teve para lidar.

 

CIRP – Como tem sido a participação e o envolvimento dos agricultores, produtores, associações e cooperativas nas diferentes fases do projeto?

JG – Na primeira fase do projeto, onde nós tivemos uma participação direta dos estudantes no campo, a participação foi boa no sentido que sempre tivemos ótimas recepções dos produtores. Como eu falei, às vezes é bom estar acompanhado por um técnico, alguém que eles conhecem para facilitar a aproximação dos estudantes para aplicar o questionário com os produtores em suas propriedades. Mas, de forma geral, nós tivemos ótimas recepções considerando que o questionário da FAO, o Tool for Agroecological Performance Evolution (TAPE) necessita normalmente de duas a três horas de entrevista com os produtores para ser concluído e que todos dedicaram esse tempo ao nossos estudantes.

Tivemos também uma participação muito boa de todas as associações, cooperativas, pessoas envolvidas junto com os produtores. Por exemplo, eu posso citar a  Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural,  Emater de Goiás, além da EPAGRI de SC, que contribuíram muito através de técnicos para ajudar a encontrar e fazer contatos com os produtores. As associações das IGs ajudaram. A Crediseara (SC) se envolveu muito na pesquisa em Seara (SC). As municipalidades também foram bem envolvidas através das secretarias, através dos veterinários, que trabalham para secretarias que atuam nas cidades. Então, realmente cada vez que a gente solicitou apoio das pessoas nas comunidades, nós fomos bem, muito bem recebidos. 

Encontrar os produtores para restituir os resultados é importante para poder fornecer aos produtores informações que podem ser úteis na elaboração de estratégias de desenvolvimento.  Ao pesquisar a transição agroecológica nas propriedades, apontamos diversos elementos, sublinhando os pontos fortes e fracos. A partir disso, os produtores, as associações podem definir planos de ação. Porém, essa tarefa não é fácil. Existe uma dificuldade em juntar os produtores para esses encontros. Eu aproveitei minha ida lá em Lages, no Queijo Serrano, por exemplo, para fazer uma reunião com os produtores, tivemos uma baixa participação dos produtores nesse encontro. Isso não é só inerente ao nosso projeto. Os técnicos e representantes de associações também nos relataram a dificuldade das em conseguir reunir os produtores, que não dispõem de tempo para se deslocarem. A questão da distância, das infraestruturas, das estradas, ainda mais com uma fase muito chuvosa no Sul, por exemplo, dificultam muito o trânsito dos agricultores, que tiveram uma série de problemas. Para contornar isso, vamos realizar dois encontros virtuais e  avaliar se de forma remota conseguimos alcançar os produtores. O primeiro acontecerá dia 6 de fevereiro, na região do queijo Cabacinha. 

 

CIRP – Ao analisar as legislações aplicadas aos queijos de leite cru, quais desafios jurídicos específicos foram identificados e como o projeto está abordando essas questões?

JG – É uma questão jurídica muito complexa, que já vem sendo discutida há muitos anos. É uma evolução permanente, que depende muito também das regiões. Estamos realizando um levantamento das legislações dos queijos de leite cru para análise. Em paralelo, durante o projeto, a aplicação da legislação do queijo de leite cru se mostra  longe de ser contemplada pelos pequenos produtores. As exigências estão muito baseadas numa legislação sanitarista dos anos 50, muito inadequadas aos pequenos produtores, o que limita a participação dos produtores. 

Muitos produtores preferem ficar na informalidade do que entrar nessa formalização, na certificação. Então é um problema sério, principalmente na produção do queijo. Tem questões, por exemplo, da certificação  das Propriedades Livres ou Monitoradas para Brucelose e Tuberculose que para muitos produtores representa um custo alto, além de problemas de gestão administrativa, de entraves a certas práticas pecuárias etc. Em relação aos queijos de leite cru, a questão sanitária é essencial e desafiadora. O prazo de maturação, por exemplo, é uma questão central: Minas Gerais, agora aprovou a maturação em até 14 dias, que está reduzindo o prazo necessário para poder comercializar, o que é bem melhor para os produtores já que atende a uma demanda dos consumidores. Já em Santa Catarina, continua 60 dias ( a não ser que análises microbiológicas comprovem a inocuidade em prazo menor). Esse período de maturação não corresponde à demanda dos consumidores que querem queijos de 5 dias. Sem contar também os problemas de adequação das infraestruturas que representam investimentos muito altos, exigências excessivas a meu ver. Tudo isso leva à informalidade no setor.

Então, são questões jurídicas que ainda estão pendentes de como nos aproximar da realidade dos pequenos produtores. Nossa discussão ainda não está completa. O projeto não pretende propor soluções, mas analisar questões importantes como a necessidade de homogeneizar as legislações no Brasil neste campo, que são diferentes em cada estado, com um grau de aperfeiçoamento na gestão sanitária dos queijos de leite cru. Então, tem muito trabalho pela frente. Isso é uma questão que leva tempo. Não é só fazer uma legislação, mas depende também da mudança de mentalidade não apenas dos produtores, mas também de fiscais e dos técnicos. Vamos tentar contribuir para, a partir desta análise da legislação, cercar alguns pontos críticos para facilitar a adequação da legislação aos pequenos produtores, mas nós não temos ainda a resposta. Estamos realizando algumas reuniões. É uma questão complexa que aborda questões microbiológicas, administrativas, financeiras, de assistência técnica que sempre reaparece em todos os simpósios. Ela foi discutida no último simpósio dos queijos artesanais do Brasil em Lages no final do ano passado.  Aqui tem que evoluir bastante. 

 

CIRP – Considerando o balanço atual, quais são as perspectivas e as próximas etapas do projeto? 

JG – Nosso projeto não foi finalizado completamente. Nós temos ainda alguns trabalhos para executar.  Nosso balanço atual é bem interessante. Acredito que o uso da TAPE, ferramenta da FAO, nos abriu um leque de resultados muito importantes. Essa ferramenta tem dez elementos da agroecologia e mais outros elementos socioeconômicos e ambientais. Cada elemento tem em média quatro perguntas, cada uma tem quatro indicadores. Então, são muitas informações que estamos tratando. Estamos tentando justamente aprofundar alguns tópicos, como o caso da juventude, do trabalho dos funcionários, da empregabilidade e também da multifuncionalidade das propriedades, além das questões de práticas agrícolas, de acesso a conhecimento e compartilhamento do conhecimento, de canais de distribuição e outros.

Estamos na metade do projeto, na fase de avaliação. Vamos tentar entregar justamente a questão sobre a legislação do leite cru, também sobre a questão do desenvolvimento sustentável das indicações geográficas a partir dos resultados obtidos. Vamos fazer uma síntese total do projeto com todos os elementos que a gente observou nas produções agroecológicas. Então, esse é um trabalho importante de divulgação do conhecimento. Nós temos uma geração de conhecimento, que precisa ser divulgada. Além disso, aproveito a oportunidade para dizer que o projeto já está sendo divulgado em vários eventos na França e no Congresso Brasileiro de Ecologia. Também está previsto um seminário final em março de 2024 para os produtores e todas as pessoas que participaram para que a gente faça um balanço completo.

Um dos passos, não menos relevantes, é que o projeto abre questionamentos, que vão permitir trabalhar com outros direcionamentos, principalmente, com as indicações geográficas. A  gente viu certas limitações do impacto das indicações geográficas. O outro resultado bem positivo na parceria com a FAO, é que a gente pode tentar completar esse uso da ferramenta TAPE. Estou participando de um grupo de pesquisa na Suíça, justamente que trabalha a questão de gados do leite e agroecologia. Estamos trabalhando essa metodologia e talvez para ter um outros estudos de caso no Brasil, no próximo ano. 

Além disso, é crucial ressaltar que, a partir deste projeto, conseguimos estabelecer uma rede inicial de contato entre professores e estudantes, todos engajados nesse esforço conjunto relacionado aos queijos artesanais de leite cru e sustentabilidade do setor e dos territórios. Estamos, assim, abrindo as portas para pesquisas em diversas áreas, com foco especial nos queijos artesanais, na inclusão produtiva e, é claro, nas indicações geográficas. Portanto, ao avaliarmos o projeto, percebemos que ele não se limita apenas à geração de conhecimento sobre a ideia original de inclusão produtiva. Na verdade, abrange uma série de elementos de todo um setor em si — desde os queijos de leite cru até iniciativas voltadas para a transição agroecológica e o desenvolvimento sustentável.

 

Assine nossa newsletter e receba novidades sobre a Cátedra em seu email.