Durante a 39ª Reunião Especializada de Agricultura Familiar do Mercosul, que aconteceu no mês de novembro no Rio de Janeiro, o professor Arilson Favareto, da Universidade Federal do ABC e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap, foi convidado para apresentar uma prévia do seu trabalho de consultoria para a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentar, a FAO, sobre a ‘Transformação dos sistemas agroalimentares e mudanças climáticas: agendas globais e oportunidades para a agricultura familiar’. O estudo deverá ser entregue à FAO nas próximas semanas.
Motivados pela Missão Josué de Castro que objetiva a alimentação de 5 milhões de brasileiros, da qual o Movimento dos Pequenos Agricultores, o MPA Brasil, faz parte, procuramos o professor Favareto para que respondesse algumas questões sobre o tema. Entre as principais afirmações da pesquisa do professor está a afirmação da importância da Agricultura Familiar Camponesa e Indígena em produzir alimentos saudáveis suficientes para a superação da fome e das desigualdades sociais de forma combinada à preservação e restauração dos biomas. Para isso, segundo Favareto, é urgente ‘alterar o padrão de financiamento não só da agricultura familiar, mas também da grande agricultura convencional’.
Confira a entrevista:
De que maneira a aceleração das mudanças climáticas pode estar transformando a insustentabilidade ambiental da agricultura convencional em insustentabilidade financeira? É possível mensurar?
Não se trata mais apenas de dizer que o modelo convencional causa impactos ambientais indesejados, o que já não era pouca coisa. O que está ocorrendo agora é que efeitos das mudanças climáticas – particularmente eventos extremos como chuvas em excesso ou, em outras regiões, as secas intensas e mais prolongadas do que o usual -, estão tornando inviável que se continue a produzir em grande escala e de forma intensiva em muitos locais. Ali só será viável manter a agricultura convencional às custas de reembolsos cada vez maiores aos produtores sob a forma de subsídios ou de seguros pagos pelo poder público, isto é, pela sociedade.
Não dá mais para tratar essas situações como eventos isolados. Estamos falando de uma mudança estrutural, de algo que será cada vez mais frequente. Relatório publicado pela FAO em 2023 já estimava em 5% do PIB (Produto Interno Bruto) agrícola mundial os prejuízos associados às mudanças climáticas. E essa cifra só vai aumentar. Só na região Sul do Brasil a Confederação Nacional dos Municípios estimou em 28 bilhões de reais os prejuízos na agricultura com a seca do início de 2023 e, depois, com as cheias no Rio Grande do Sul. Para se ter uma ideia, isso representa mais da metade do valor total contratado no Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) na safra 2022/2023.
E nisso não estão incluídos os custos externalizados à sociedade de forma invisível: como os gastos com problemas de saúde relacionados ao uso excessivo de agrotóxicos e ao consumo de alimentos ultraprocessados, a contaminação e comprometimento de recursos hídricos, a perda acelerada de biodiversidade, entre outros.
Mais cedo ou mais tarde o Brasil (mas isso vale para qualquer outro país) precisará refazer o zoneamento da produção agropecuária e adotar um plano de adaptação e mitigação sério e ambicioso, cujos contornos deveriam ser objeto de amplo debate social, envolvendo desde já não apenas produtores, governo e sistema financeiro, mas também cientistas e organizações ambientalistas. Quanto mais demorar, maior será a ineficiência do gasto público e maiores os custos para a sociedade.
2) A COP 28 foi um show das corporações… inclusive com o debate sobre transição dos sistemas alimentares. É possível realmente afirmar que a COP30 seja uma janela de oportunidades?
Eu não diria que a COP28 (Conferência das Partes sobre as Mudanças Climáticas da ONU) foi apenas um show das corporações. Claro que, no capitalismo, a influência das grandes corporações será sempre expressiva. Mas também houve ali um embate entre diferentes forças em torno dos resultados da conferência. Se não fosse assim, o resultado teria sido ainda pior.
Feita essa ressalva, é possível dizer que houve avanços, porém, milimétricos, insuficientes, ambíguos. A Declaração final fala pela primeira vez em uma transição no uso de fontes fósseis de energia para fontes renováveis, mas não diz como. O Fundo de Perdas e Danos, discutido há anos, foi finalmente criado, embora os valores anunciados sejam pífios. E a Declaração sobre sistemas agroalimentares deu visibilidade inédita ao tema e abriu uma porta para que se cobrem compromissos mais explícitos. É preciso muito mais.
Por que então acreditar que na COP30, a ser realizada em Belém, em 2025, pode ser diferente? Primeiro, porque o Brasil historicamente tem posições mais avançadas do que os países que terão sediado as três conferências anteriores – e o país anfitrião desempenha um papel muito importante na dinâmica desses eventos. Segundo, porque será, talvez, a última grande vitrine internacional desse mandato do Presidente Lula, e sabemos que a projeção externa de sua imagem e do Brasil são prioritárias no atual governo. Terceiro, porque na COP30 completaremos 10 anos do Acordo de Paris e da Agenda 2030 e seus Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. O balanço não será positivo e haverá muita pressão para que os países sejam mais ousados.
Mas há duas condições para isso. Da parte do governo brasileiro, será preciso superar a ambiguidade que têm marcado a estratégia para o setor agropecuário. Se no plano internacional o petróleo é o grande vilão, no Brasil é o setor agropecuário, com produção e mudança no uso do solo, o maior vetor de emissões. Até aqui os compromissos são tênues nesse campo, como mostram as nossas Contribuições Nacionalmente Determinadas (a agropecuária sequer estava entre os sete setores mencionados), e como fica evidente também no Plano de Transformação Ecológica (no qual tem havido idas e vindas envolvendo a inclusão desse setor), como resultado de embates internos entre áreas do próprio governo. No âmbito das relações exteriores, a diplomacia brasileira precisa parar com o discurso de que nossa agricultura já é sustentável e que nos cabe o papel de alimentar o mundo. Essa ideia não pára em pé diante de evidências sociais e ambientais. É pura propaganda e faz cortina de fumaça sobre um tema que deve ser melhor enfrentado e não mascarado. Em vez de insistir nessa mensagem que esconde as contradições do nosso modelo agropecuário, seria melhor “separar o joio do trigo” – quem produz e quem não produz, embora use recursos públicos; quem produz com menos impacto ambiental e com mais impacto ambiental. E desenhar instrumentos diferenciados de acordo com a real contribuição de cada segmento, tanto da agricultura familiar como empresarial e de grande porte. Esse tema é delicado, mas precisa ser enfrentado.
Da parte da sociedade civil é fundamental construir desde já um consenso mínimo em torno de compromissos mais ousados e de formas de implementá-los. E, principalmente, é preciso planejar o futuro do conjunto do setor agropecuário e do Brasil rural. Não se trata de criar um ou outro programa, mas de repactuar o modelo e os instrumentos da agropecuária brasileira para os próximos trinta anos. Não se trata de chegar em Belém com ideias para discutir, mas de mostrar em Belém inovações institucionais e em políticas que concretizem essa agenda mínima e que privilegiem uma transição que se possa chamar de justa e sustentável. Isso não poderá ser feito só em 2025. É preciso começar já.
3) Houve a afirmação de que a agenda do clima pode substituir a agenda da sustentabilidade e agravar desigualdades. Como isto pode afetar a Agricultura Familiar Camponesa Indígena?
Eu tenho chamado a atenção para o fato de que o Acordo de Paris, a Agenda 2030 e os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) prometiam ser uma grande inovação porque tentaram unificar duas agendas que sempre andaram separadas – a agenda do bem estar e da inclusão social e a agenda do clima. Mas desde então a agenda climática parece estar se sobrepondo, deixando a agenda da inclusão em segundo plano. O que se deve a duas razões: cresce a percepção de que há intensificação e aceleração dos eventos extremos, gerando o correto sentimento de urgência para a agenda do clima; mas também há setores que já enxergaram nessa agenda boas oportunidades de negócios, o que não é tão claro na agenda da inclusão, que segue sendo vista como algo que se pode resolver mais simplesmente com compensações.
Isso é ruim, porque estamos perdendo uma oportunidade ímpar: pôr em marcha uma transição que, simultaneamente, enfrente os dois problemas: clima e desigualdades. Sem isso a agricultura familiar, camponeses e povos indígenas continuarão sendo marginalizados e vistos como objetos de política social, de contenção de danos, e não como parte estratégica de uma transição justa e sustentável. Boa parte dos investimentos na transição ecológica poderão ficar concentrados em grandes negócios, talvez com bons resultados ambientais, mas agravando ainda mais as desigualdades e o custo de enfrentá-las.
4) Somente na última década (2012 – 2022) mais de 1 milhão de jovens saíram do campo e migraram para cidades. Como é possível fortalecer a Agricultura Familiar Camponesa e Indígena, pensando, inclusive, no retorno e permanência da juventude no campo? Muitos programas voltados à AFCI retornaram este ano, mas com orçamento limitado. É possível uma nova geração de políticas públicas? Quais caminhos poderão ser tomados?
Recursos limitados são de fato um problema, mas há também outros três aspectos que limitam a capacidade desses programas em reverter o quadro apresentado nessa pergunta.
Primeiro, a coordenação entre os vários programas para a agricultura familiar sempre foi débil ou mesmo inexistente. Estudos sobre essas políticas durante os governos Lula e Dilma já mostravam que a maior parte das pessoas que recebiam crédito não tinham assistência técnica. Ou que os que recebiam assistência não eram os mesmos que acessavam programas de compras públicas, e assim sucessivamente. Há uma complementaridade que existe só no papel, mas não na vida das pessoas, o que dificulta que se alcance efeitos duradouros.
Segundo, esses programas foram inovadores duas décadas atrás, mas hoje precisam ser renovados e melhorados. Queiramos ou não, dificilmente os jovens voltarão ao campo para fazer produção de subsistência. Não sabemos exatamente o que quer a juventude rural, nem houve reflexão sistemática sobre o que funcionou e o que não funcionou na geração anterior de políticas.
Terceiro, e muito importante, uma soma de programas não faz uma transição no conjunto do agro brasileiro. Não temos hoje uma visão de futuro para o Brasil rural e interiorano por parte do Estado brasileiro. Há uma soma ambígua de programas: aqueles voltados à agricultura familiar, que já mostraram seus êxitos e seus limites e que infelizmente são periféricos na estrutura do Estado; e há aqueles que repetem e reforçam o padrão da agricultura convencional, onde se concentram os recursos, e cujos efeitos também são conhecidos, com produção de riquezas, sem dúvida, mas também com concentração e degradação ambiental.
Claro que será preciso programas e recursos para os dois segmentos – a agricultura familiar e a grande agricultura empresarial -, e é claro que há diferenças entre essas duas formas de produção. Mas é preciso, progressivamente, introduzir condicionalidades socioambientais no planejamento e no financiamento do agro brasileiro como um todo, e isso vale para ambas as formas de produção. Não dá mais para os movimentos sociais discutirem somente a pauta da agricultura familiar, camponeses e povos indígenas, os ambientalistas se voltarem somente à pauta ambiental, e deixarmos os instrumentos para a agricultura convencional serem tratados como um tema somente do agronegócio.
Uma verdadeiramente nova geração de políticas públicas não se fará apenas ampliando os recursos para agricultura familiar no Plano Safra, nem mesmo com a proliferação de pequenos programas para cada uma das novas demandas que surgem, numa espécie de “programismo”. Em vez disso, é preciso uma estratégia de transição para o conjunto do Brasil rural e um novo modelo de políticas públicas que traduza essa visão de futuro. Caso contrário, seguiremos tendo o que venho chamando de “jogo de soma zero”: o que se alcança com alguns programas é anulado pelos efeitos maiores e agregados da forma predominante de organização da produção e do espaço no Brasil rural.
5) Gostaria que o professor explicasse os seguintes termos: economia dos custos relativos e o princípio de dupla eficiência.
A ideia de economia dos custos relativos é bastante conhecida. O prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen, já usava esse conceito há décadas para mostrar que nas regiões rurais, com pouco investimento se pode alcançar um progresso incrível, justamente porque ali, por serem áreas em geral mais pobres do que grandes centros, os custos são menores: com pouco apoio você pode melhorar muito os níveis de renda, de educação e de saúde de uma população, comparativamente a áreas urbanas ou à grande agricultura, nos quais esses custos são maiores.
Na exposição que fiz na reunião da REAF, no Rio de Janeiro, eu associei essa mesma ideia à agenda das mudanças climáticas. É mais barato, e poderia levar a resultados iguais ou até superiores, investir mais na agricultura familiar mais vulnerável e em comunidades tradicionais, do que gastar esses mesmos valores em grandes propriedades. Esse raciocínio não vale para todas as regiões, é claro. Mas seria fundamental mapear e quantificar isso. E se houver dois territórios – um com predomínio de grandes propriedades e outro com predomínio de agricultores familiares e comunidades tradicionais – e se for possível alcançar o mesmo resultado ambiental, investindo o mesmo montante de recursos em um e em outro, deve haver prioridade para o território de agricultores familiares e comunidades tradicionais, por uma razão muito simples: além dos ganhos ambientais, haverá maiores ganhos sociais. Isso é o que eu chamei naquela ocasião de Princípio da Dupla Eficiência.
Na minha opinião, a adoção desse tipo de Princípio deveria ser uma bandeira dos movimentos sociais para a COP30: que parte dos fundos e recursos criados para a agenda climática funcionem sob esse mecanismo. Se não fizermos isso, vamos desacoplar as duas agendas, climática e ambiental: rios de dinheiro serão investidos em programas de recuperação de áreas degradadas e restauração de paisagens priorizando grandes produtores e excluindo pequenos. Isso pode gerar um efeito não previsto sobre o mercado de terras, agravando a exclusão. Não se trata de condenar os projetos em áreas e grandes estabelecimentos da agropecuária convencional. É importante que eles existam. Trata-se, isso sim, de desenhar regras e instrumentos que possam ser duplamente eficientes, e que possam melhorar as oportunidades de participar, nesse tipo de investimento, daqueles que, sozinhos, não conseguiriam acessar esses grandes fundos. Esse é mais um exemplo do que seria uma verdadeiramente nova geração de políticas.
Crédito: Marcos Issa/Argosfoto
Fonte: MPA Movimento dos Pequenos Agricultores
Foto de capa: MPA Rondônia